Há quase 3 anos, no dia 2 de junho de 2020, quando o pequeno Miguel Otávio, de 5 anos, filho da então empregada doméstica Mirtes Renata, de 36, morria tragicamente ao cair do 9º andar de um prédio de luxo, em Recife (PE), após ter sua supervisão negligenciada pela patroa da mãe, Sarí Corte Real, o país se comovia e ao mesmo tempo se identificava com aquela história que, por si só, colecionava tantas questões sociais presentes, sobretudo, no cotidiano das trabalhadoras domésticas brasileiras. Do racismo estrutural e as heranças do colonialismo, à vulnerabilidade, precarização e segregação socioeconômica, são muitas as camadas.
À época, a juíza do trabalho Maria José Rigotti* se preparava para escrever uma pesquisa para seu mestrado em Sociologia na Universidade de Coimbra, em Portugal, justamente sobre o panorama atual dessas profissionais autônomas, quando se deparou com a tragédia e observou que, não apenas o caso, mas também a força por justiça demonstrada por Mirtes e a rede de apoio que se formou em volta dela poderiam servir como uma voz uníssona para expor, ainda mais claramente, as questões vividas todos os dias por tantas outras mulheres. O artigo, que recebeu nota máxima, acabou virando o livro "Ouçam Mirtes, Mãe de Miguel", lançado pela Appris Editora no mês passado.
Neste dia 27 de maio, quando se celebra o Dia Nacional da Empregada Doméstica, a autora comenta, em entrevista ao GLOBO, sobre a elaboração do material e explica como a tragédia de Miguel e a luta de sua mãe ajudam a expor as mazelas sofridas por essas profissionais. Rigotti conta que, mesmo em meio a dor, Mirtes, na época da morte do filho, a encorajou a dar prosseguimento com a pesquisa e deu o sinal verde para que a sua história servisse como inspiração para trazer à tona tantas outras.
Eu estava iniciando uma pesquisa sobre trabalho doméstico, quando a tragédia ocorreu. Assisti às entrevistas da Mirtes e fiquei muito tocada. Vi naquelas circunstâncias, na relação de trabalho doméstico, a estrutura social desigual do Brasil. Me ocorreu, então, de fazer um estudo de caso, olhando profundamente para o que aconteceu.
Entrei em contato com a Mirtes e ela me encorajou a continuar. Então, prossegui. Não imaginava à época que haveria tanto material de análise e que Mirtes se transformaria, com o tempo, na ativista das causas raciais e de Direitos Humanos como se tornou. Atualmente, ela é bacharel em Direito. É uma mulher que transformou o luto em luta.
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Mirtes, inspiração para o livro, e a autora, Maria José Rigotti - Foto: Divulgação Mirtes, inspiração para o livro, e a autora, Maria José Rigotti - Foto: Divulgação
Ouvir a voz potente e articuladora de Mirtes e o que desencadeou dela é ouvir as experiências que revelam realidades de profundas desigualdades, cujo enfrentamento e problematização são urgentes no país. Em torno de 98% da categoria são mulheres, sendo a maioria negras e pardas, de baixa escolaridade no geral, oriundas de famílias pobres e baixa remuneração. É categoria que impacta expressivamente o mercado de trabalho e a sociedade, e é a maior categoria ocupacional para as mulheres trabalhadoras no país, em torno de 5,7 milhões de mulheres.
Houve mudanças com o passar do tempo, mas o trabalho doméstico remunerado é ainda sinônimo de trabalho precarizado, desvalorizado, invisibilizado e discriminado, carregando a marca da estigmatização, do preconceito e da vulnerabilidade pela falta de proteção social.
Em torno de 70% dessas trabalhadoras são informais, sem carteira de trabalho assinada, muito acima da média nacional já bastante alta de informalidade no mercado de trabalho para as mulheres no país. E a informalidade se dá tanto pelo fato de isso ser permitido na própria legislação, caso das diaristas que trabalham até dois dias por semana na mesma casa, quanto pela dinâmica cultural de empregadores que fraudam a legislação trabalhista e não respeitam os direitos.
Todo este cenário nos ajuda a compreender as estruturas sociais do Brasil caracterizadas por desigualdades estruturais históricas, como o racismo em todas as suas dimensões, o sexismo e o classismo.As trabalhadoras domésticas são atravessadas, nas suas experiências cotidianas, por tripla opressão: de gênero, de raça e de classe.
Para além da questão ligada ao sexismo, estas estruturas revelam os resquícios fortes de um passado escravocrata e do pós abolição, ainda inconclusa. No país, o trabalho doméstico externalizado para outra mulher fora do núcleo familiar não teve início apenas quando do processo de maior entrada de mulheres no mercado de trabalho. Foi prática cultural desde o período colonial, escravocrata e patriarcal a dinâmica da casa grande, com a escravização de mulheres negras para o trabalho no âmbito doméstico com todas as violências cruéis e desumanizadoras por elas vivenciadas.
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Sarí Corte Real permitiu que Miguel subisse de elevador desacompanhado. Garoto acabaria morrendo momentos depois - Foto: Reprodução Sarí Corte Real permitiu que Miguel subisse de elevador desacompanhado. Garoto acabaria morrendo momentos depois - Foto: Reprodução
O fato é que as condições precárias de trabalho vivenciadas pelas domésticas revelam a posição de sub-humanidade em que são colocadas em muitas destas relações. A "colonialidade" é evidenciada na divisão racial do trabalho, ao produzir e reproduzir violências, discriminações e invisibilidades. Assim, olhando o fato concreto do caso Miguel, tratamos destas questões no sentido macro da sociedade.
A tragédia causou muita comoção à época e Mirtes passou a lutar por justiça diante do que aconteceu. A ela se uniram coletivos, ativistas, artistas, intelectuais, inclusive em nível internacional e foi se revelando material muito extenso e denso. O título "Ouçam Mirtes, mãe de Miguel" é referência ao lema da campanha potente por justiça iniciada por Mirtes após o falecimento de Miguel. Foram feitas camisetas com frases potentes de Mirtes e que a artista Mana Bernardes assinou.
O livro é composto pela análise de entrevistas, reportagens, inúmeras lives, inclusive da Semana Internacional do Menino Miguel, campanhas, músicas, obras de arte, homenagens à luta de Mirtes, e entre outros fatos em referência ao que ocorreu. A Adriana Calcanhoto, por exemplo, fez a música "2 de junho" em referência à tragédia.
Exatamente pela opção decolonial adotada (o decolonialismo consiste em desconstruir padrões do colonialismo, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternos) a seleção foi exclusivamente de referências feitas em caráter público por Mirtes nas mídias sociais.
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Mirtes e Miguel: mãe transformou o luto em luta - Foto: Reprodução Mirtes e Miguel: mãe transformou o luto em luta - Foto: Reprodução
Eu baseei a pesquisa no trabalho doméstico remunerado no Brasil para compreender as estruturas sociais abissalmente desiguais no Brasil. Parti, assim, de um acontecimento trágico e doloroso, uma tragédia horrível que atravessou a vida de Mirtes. O fato se deu em plena pandemia, e digo que foi uma pesquisa entre letras e lágrimas e que até hoje me toca profundamente.
São trabalhadoras que estão na "encruzilhada" de mecanismos de opressão que operam na sociedade e que as colocam no papel de subalternidade e invisibilidade. O livro interroga sobre: as invisibilidades e desigualdades de classe na análise do perfil socioeconômico das trabalhadoras domésticas; a desigualdade jurídica, as incompletudes e exclusões nos direitos sociais para a categoria; a desigualdade de gênero na perspectiva da divisão sexual do trabalho, e as desigualdades raciais, na perspectiva do racismo estrutural, do mito da democracia racial no Brasil e da divisão racial do trabalho.
Todo o extenso material analisado e toda a recolha de informação para as análises feitas tiveram sempre uma preocupação central: o critério de "ouvir a voz" de Mirtes e, na sua potência, o que foi amplificado em outras vozes envolvidas na sua luta por justiça. É o que em sociologia se denomina de Epistemologias do Sul, trazendo e ouvindo as vozes das margens ao centro, o que me permitiu ir além das narrativas que estavam sendo reproduzidas hegemonicamente pela mídia comum em relação ao caso.
De fato, proporcionalmente à precarização e descumprimento da legislação trabalhista, verifica-se que a Justiça do Trabalho ainda é pouco acionada por estas trabalhadoras. Acho que é uma conjunção de fatores, desde a falta de acesso à assistência jurídica, a questões ligadas ao medo de estigmatização por ter acionado a justiça, a depender da localidade que trabalham. É dado que merece ser melhor pesquisado.
A emenda surtiu efeito, de certo modo, mas ainda há um caminho a se avançar. Pesquisas registram mudanças na composição da categoria, por exemplo, quanto ao perfil etário, com aumento do número de mulheres acima de 30 anos e diminuição de jovens, comparativamente a outras trabalhadoras em geral. Também houve um incremento nos níveis educacionais em decorrência dos impactos para essas trabalhadoras pelas políticas de ampliação do acesso à educação a partir dos anos 2000.
Observa-se, igualmente, que, talvez pela regulação de número máximo de horas de trabalho, houve a diminuição do número de trabalhadoras dormindo nas residências em que trabalham, cuja condição está também relacionada à maior exposição a violências e assédios, notadamente o sexual.
Contudo, trata-se de um cenário de intensa precarização, com demora e insuficiência em reconhecimento de direitos, que foram conquistados com muita luta, direitos ainda desiguais em relação a outras categorias, como as questões ligadas à saúde e segurança do trabalho, à desproteção trabalhista diante da informalidade e também direitos previdenciários, entre outros. Até hoje, o seguro desemprego das domésticas é inferior às demais categorias. Até hoje, não há normas regulamentares específicas para a categoria para proteção de saúde, segurança e medicina do trabalho. O que justifica isso?
Vou citar um trecho do livro: "As avenidas das desigualdades de gênero, raça e classe se cruzaram na vida de uma trabalhadora doméstica, Mirtes, e exatamente aí nessa encruzilhada, seu filho Miguel foi abandonado para a morte. "Ouvir a voz" de Mirtes, na sua dor e na sua potência, e o que foi amplificado em outras vozes envolvidas na sua luta por justiça possibilitam retirar o véu da indiferença e enfrentar o classismo, o sexismo e o racismo que estruturam a sociedade brasileira. Luta urgente! Luta de todas/os nós!"
* Maria José Rigotti é juíza do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região (DF/TO). Doutoranda em Sociologia pela Universidade de Coimbra - Portugal, e mestre em Sociologia pela mesma universidade. Especialista em Epistemologias do Sul pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), em Direito Público pelo Instituto de Direito Público (IDP) e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Pesquisadora do grupo de pesquisa Capital e Trabalho (GPTC/USP). Associada à Associação Juízes para a Democracia (AJD), à Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra) e à Associação dos Magistrados Trabalhistas da 10a Região (Amatra X).