Desde a última edição da Revista Anamatra (outubro/2003), muitos foram os embates travados pelos juízes do trabalho por meio da sua entidade nacional, alguns internos, outros externos, mas todos revestidos de importância fundamental para o aperfeiçoamento das instituições e do Estado Democrático de Direito. Reafirmando a sua postura de luta pelo aniquilamento das mazelas que expõem a fragilidade do Poder Judiciário, a Anamatra impugnou atos arbitrários e ilegais praticados por pelo menos 08 (oito) Tribunais Regionais do Trabalho, indo da malsinada prática de nepotismo ao abuso de poder utilizado contra magistrados de primeira instância. Coincidentemente, na mesma ocasião, abriu discussão com os associados sobre um modelo mais democrático de gestão administrativa, política e funcional do Judiciário.
Com o objetivo de realçar o modo extravagante de administrar escolhido por alguns dirigentes de tribunais, devo mencionar apenas o caso que mais impressionou os dirigentes associativos de todo o Brasil, pelo flagrante desrespeito ao direito de defesa dos associados, pela prepotência utilizada e por outras maneiras ditatoriais presentes no verdadeiro linchamento que se promoveu contra juízes na 11ª Região. A presidente e corregedora do TRT do Amazonas afastou juízes como medida punitiva, sem a instauração de qualquer processo, mediante portarias; bradou publicamente contra um deles, mandou realizar questionário e depois distribuiu a todos documento contendo o modelo de magistrado que não se deve seguir, apontando-o nominalmente, removeu funcionários das varas como medida retaliatória, despejou a Associação dos Magistrados do Trabalho da 11ª Região (Amatra) do prédio do tribunal, e na seqüência concedeu entrevista coletiva não menos desastrosa.
É evidente que todo o apoio político foi oferecido à Amatra 11 e aos juízes da 11ª Região, com a presença de diretores da Anamatra em Manaus, em duas ocasiões, além da definição de providências administrativas e judiciais contra o arbítrio, algumas já implementadas e outras em fase de elaboração pela assessoria jurídica da Entidade.
Reconhecendo o hermetismo do atual sistema político-administrativo dos tribunais, responsável pela concentração de poderes nas cúpulas e pela reduzida permeabilidade, a Anamatra decidiu debater com os associados a instituição de mecanismos capazes de dar maior legitimidade social ao Poder Judiciário, com o estabelecimento de democracia interna entre as diversas instâncias e de parâmetros outros mais adequados à eficiência administrativa e à transparência. Concluiu o Conselho de Representantes, por ampla maioria, ser imprescindível a criação do Conselho Nacional de Justiça, integrado majoritariamente por juízes de todas as instâncias, eleitos de forma direta pelo conjunto da magistratura e por representantes da sociedade civil organizada, estes escolhidos pelo Parlamento.
Além de primar pela independência do exercício da função jurisdicional, ao CNJ competirá estabelecer as políticas gerais e estratégicas da Administração Judiciária. Também lhe competirá exercer atividades de avaliação do Poder Judiciário, com poderes de coordenação, supervisão, fiscalização e disciplina sobre as atividades administrativas e orçamentárias de seus órgãos e serviços auxiliares, o exercício do poder disciplinar, o provimento de cargos de magistrados dos tribunais, inclusive das cortes superiores e a regulamentação de procedimentos de acesso à carreira e de promoção.
A Anamatra não fará do seu discurso antigo de democracia interna e transparência mera retórica exibida em dias de confraternização. É evidente que as reações se apresentam, oriundas sobretudo dos setores que não pretendem compartilhar o poder. A vida inteira, parafraseando Vandré, nos ensinaram que a existência de qualquer controle com a participação da sociedade civil representaria um duro golpe na independência dos juízes. Não é verdade. Está em jogo o enfrentamento do modelo arcaico bem à feição dos segmentos hegemônicos do Poder Judiciário.
Outra ação incisiva foi a resposta ao Presidente Lula que, bem ao estilo neoliberal do mercado e de seu antecessor, declarou que tudo pode ser objeto de negociação na reforma trabalhista, à exceção das férias de 30 dias. Reagimos de maneira contundente. Os assessores devem informar ao mandatário primeiro que a usurpação de direitos conquistados a custo de suor e de lágrimas não cria nenhum posto de trabalho, nem melhora as condições de labor. Ao contrário, aprofunda o fosso social e agrava a crise brasileira. Na mesma perspectiva, a Anamatra pugnou pela redução da jornada semanal para 40 horas, considerando que o resultado do avanço tecnológico alcançado nos últimos anos foi apropriado apenas pelo capital, deixando à margem milhares de trabalhadores no mundo inteiro.
Mas para não tratar a questão de maneira isolada, propõe-se também o fomento de políticas voltadas para a geração de empregos, sem precarização, havendo necessidade, ainda, diante da mobilidade física e virtual do capital, especialmente do processo denominado de offshore, de uma nova união internacional dos trabalhadores para se contrapor à globalização egoísta e destruidora da essência do sentido de sociedade. O velho bordão marxista coloca-se na ordem do dia, mesmo que seja apenas para reforçar a luta por trabalho decente dentro dos marcos capitalistas.
Tendo opinado sobre a nova lei de falências, na Câmara e no Senado, com a distribuição de farto material e de propostas aos parlamentares, a Anamatra, preocupada com a crise aberta da multinacional italiana Parmalat, que coloca em xeque mais de seis mil empregos no Brasil, relembrou que a solução socialmente mais justa pode ser encontrada no regime de autogestão, por meio do qual os próprios empregados estariam aptos a administrar a empresa, combinado força-de-trabalho com capacidade gerencial e fazendo justiça aos que sempre perdem nos embates duros pela dignidade social. A alternativa está inserida na esfera da chamada economia solidária, como contraponto à economia do capital. Esse paradigma visa ao resgate da centralidade do trabalho humano. Várias iniciativas marcaram as últimas ações da entidade em prol do combate ao trabalho escravo, cabendo destacar o contato direto com parlamentares e outros agentes políticos para ver aprovada a PEC que expropria a terra dos escravocratas.
Na reforma do Judiciário, em trâmite no Senado Federal, buscamos alterar o núcleo conservador da proposta, mas o Governo Lula surpreendeu novamente ao defender a súmula vinculante - o CNJ de perfil estritamente disciplinar e composto por indicação das cúpulas, sem as necessárias cláusulas de barreira quanto aos membros da sociedade civil. Também não se preocupou com a forma pouco democrática de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador Geral da República, nem questionou a forma de exploração dos cartórios, verdadeiro óbice ao acesso à justiça. Por outro lado, devemos ressaltar a importância da ampliação da competência da Justiça do Trabalho para compreender todas as demandas oriundas do trabalho humano, cabendo aos juízes do trabalho construir jurisprudência favorável ao conteúdo mais abrangente possível. Medidas outras ligadas à cidadania também mereceram apoio ostensivo da Anamatra (restabelecimento do número de 27 ministros no TST, proibição do nepotismo, quarentena e fim das sessões secretas). Se algo de positivo foi construído num cenário tão desfavorável, o mérito está na dedicação exaustiva dos dirigentes associativos trabalhistas, da Anamatra e das Amatras, elaborando textos, conversando com os parlamentares e realizando tantas outras tarefas.
O eixo de qualquer movimento coletivo deve primar pela busca da unidade no interior da respectiva categoria ou do segmento representativo da sociedade. A unidade real, todavia, não é mera reunião de pessoas numa mesma sigla orgânica sem o cumprimento do conteúdo finalístico pelo qual estão entrelaçados. Ela pode materializar-se de forma mais legítima quando são reconhecidas as diferenças e construídas as alianças em torno de princípios comuns, dando sentido ao conceito de união. O receio de enfrentar a realidade, muitas vezes, lança-se como obstáculo ao desenvolvimento mais harmônico das entidades de classe da magistratura brasileira.
É dentro desse panorama que se insere o debate sobre a desvinculação institucional das Amatras da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que abriga alguns ferrenhos opositores movidos pelo legítimo romantismo da unidade da magistratura em torno da Associação de todos os segmentos da magistratura. E assim os considero pela notória boa-fé presente na avaliação, insuficiente, no entanto, para fazê-los perceber os caminhos tão opostos e independentes pecorridos pela Anamatra e pela AMB nos últimos anos. Essa adversidade é capaz de gerar problema incontornável para os presidentes das Amatras, qual seja, o da sobreposição. Vinculados que se encontram a dois Conselhos de nível nacional (Anamatra e AMB), os dirigentes trabalhistas e apenas eles, quando há conflito nas decisões tomadas pela Anamatra e pela AMB, devem optar pelo descumprimento de uma delas.
A linha adotada pela Anamatra nos últimos anos, inegavelmente, deu-lhe identidade própria como organização de âmbito nacional, notadamente nos espaços conquistados no Poder Legislativo, na imprensa e nos demais meios, daí decorrendo que tais atores não identificam sequer ligação dos juízes do trabalho com a AMB. A desvinculação das Amatras, estou certo, não provocará nenhum prejuízo à causa da magistratura, que cada dia mais, para a Anamatra, tem que ser antes a do conjunto da sociedade brasileira.
Por essa razão, o foco da defesa do Estado Democrático de Direito pelos juízes tem que estar guardado de uma transversalidade além do perfil corporativo. Ao invés de retrocessso para o movimento, entendo que após a desvinculação que estamos discutindo, novo patamar positivo de legitimidade deve ser estabelecido, buscando cada entidade solidificar as suas ações a partir de posturas propositivas que a qualifiquem para o debate dos grandes temas. Nesse cenário, haverá sempre a perspectiva do avanço, sob pena da perda de espaço político. Sei que há argumentos sobre o momento inapropriado da discussão, como se houvesse calmaria num Estado com enormes deficiências, cujo Poder Judiciário é chamado constantemente e não consegue corresponder às expectativas da população. Pelo menos no campo da reforma constitucional em andamento, nada será alterado, eis que a Anamatra e a AMB continuarão trabalhando do mesmo modo, encaminhando os seus pontos de vista de maneira absolutamente independente. Sair da AMB significa reconher o óbvi já estamos desvinculados e não precisamos de duas entidades de âmbito nacional para cuidar dos mesmos assuntos. Mas esse é um assunto que deve ser decidido, soberanamente, pelos associados, competindo à direção da Anamatra cumprir o que for deliberado.
Afirmação e resistência dos direitos sociais: é justo, a partir desse desafio e dessa contradição que os juízes do trabalho pretendam refletir sobre os direitos sociais; é justamente enfrentando esse dilema que pretendemos desvelar, na linha de Boaventura dos Santos, não só questões insuspeitas, mas também energias emancipatórias. Enfim, trata-se da necessidade de registrar a centralidade do trabalho humano no contexto de uma economia que a dia mais se entrega ao capital. Assim será o Conamat de Campos do Jordão, no período de 5 a 7 de maio de 2004. Todos ao 12º Congresso da Magistratura do Trabalho.